Wednesday 30 May 2007

Cores de Verão

Lembras-te do Verão? Aquele nosso verão, que cheirava a sol, sabia a mar, e nos arranhava a pele bronzeada? Aquele verão passado em cima de umas ruidosas socas vermelhas, toc, toc, toc, a minha pegada arenosa no chão. Os piropos de gozo, teu e dos teus amigos, eu a puxar a saia para baixo, que as pernas feias, magras, cheias de cicatrizes das quedas em duas rodas, e as socas a disfarçar a minha fraca condição de irmã mais nova. Todos os dias tinhamos imensas horas e imensos dias. Amanhã fariamos o mesmo que hoje e hoje, logo se veria, talvez pulássemos a cerca dos primos ricos já na Sardenha, só para dar um mergulho na piscina que eles, imprudentemente, deixavam escancarada para nós. No lusco-fusco podiamos ir roubar figos (porque é que lhes chamavamos pens?!) e perdermo-nos naquele prado imenso, até o homem se chatear e corre, corre! o arfar dos cães já a roçar-nos as canelas. Pegar na chymano e ir até a casa da Ema, ou melhor, ema, cara de gema, gozar com a teresa que só gostava de livros de guerra, ouvir as piadas da Guida, a sardenta dos olhos verdes ou os sermões da Rita, a mais velha das cinco irmãs. Podiamos andar no baloiço, maldita mania a minha, a de saltar do baloiço quando ele ainda no ar. Estavas lá, lembras-te? parece que ainda me vejo, cabelos emaranhados, salgados, um vento morno na cara e mais alto, mais alto que parece que vôo. Acrobaticamente, num salto mal calculado e sem estilo, tento, em vão, livrar-me daquele assento de ferro e madeira, em cheio na minha cabeça! Um branco rápido cegou-me os olhos e em seguida um calor vermelho e pegajoso já na t-shirt, amarela e preta, um tigre, dois tigres, três tigres. Durante anos os bêbedos da roulotte, contaram a história da miúda de cabeça partida que numa tarde de verão correu como uma gazela, fintou árvores, bicicletas e motas. A miúda com a t-shirt, amarela e preta, salpicada de vermelho: Um tigre, dois trigues, tês trigues...

Sunday 27 May 2007

Fantasias

... Ela, por seu turno, alheia ao fim de tarde que preguiça lá fora, do lado de lá da vida, avança seduzida para o corpo dele nu sombreado a contraluz. Quer amaciá-lo, tocá-lo ao de leve, roçá-lo invisível, apalpá-lo em braille, e os mamilos apenas, na ponta da sua língua. Por onde te começo? ele pergunta. Mera retórica para quem sabe exactamente por onde a começar e são já dele as torrentes que os seus dedos longos, suaves, destaparam com uma curiosidade possessiva. Tentando articular um pensamento, que entretanto se derrete sob o odor agri-doce que ele suavemente espalha sobre ela (ou será ela sobre ele?), tentando, que ele a queira mais que tudo, só a ela; e é a vontade tão forte que não chega o saborear, trincar, lamber, chupar, porque nem todo ele, bebido e engolido de uma só vez, acalma a agitação frenética, a vontade quase absurda que ele a invada, mergulhe nela, se afogue, enquanto agarra um suspiro perdido que a reclama para ele. 'És minha', nas veias que saltam dos seus braços, 'és minha' nos músculos que se contraem ritmados, 'és minha' nas mãos frias, firmes, a puxar as suas ancas, 'és minha', nos cabelos da nuca, 'és minha' no fim das suas costas, 'és minha' na sua boca, ... sou...
...vinda do nada uma palmada de estalo, ruidosa e vermelha, despenha-se nas nádegas dela.
- Está bem lavadinha, está?
não a palmada, mas a voz dele, penetrante e quente, acorda-a da fantasia que a fez demorar-se no banho muito para além do razoável - O jantar está pronto - informa, enquanto ela lhe lança um olhar húmido, atrevido, irrecusável. Regressa-lhes dominadora aquela vontade veemente e obsessiva - e se nos comêssemos como se não fôssemos casados? - e ainda escorregadia já se insinua de novo nele.

Monday 21 May 2007

Amor em conserva

Hoje pensei em ti, em nós. Um então retórico aquece-me o ouvido, invade-me a alma, repetido, vezes sem conta, até eu te abraçar e viajar na tua boca, onde só nós somos. Nunca soubeste, nunca te deixei perceber como me enlevava o vibrar quente da tua voz, nessa ínfima questão, nessa tua procura doce e meiga de mim. Se eu, e as tuas mãos, primeiro os ombros, o fundo das costas, os pêlos da nuca, o cabelo, o cheiro inspirado, e então, na minha cintura, nos meus braços, nos meus dedos, entrelaçados nas tuas amarras, vencidos de amor ao teu toque. E mais um trago e mais um e depois paro, eu prometo, e então, viro-me suspirando uma eternidade, sinto-te, não te vejo, que não posso, não és meu, mas assim de olhos fechados, tu inteiro, e dou-te os meus ais na esperança que percebas, que os guardes, que eles fogem, como um segredo devastador se revelado. A cabeça pesa-me sobre o teu peito e pum-pum, pum-pum, é o teu coração que acelera, que lateja promessas e sonhos inconfessáveis nas tuas palavras, e te revela, à primeira. E então, e então, deixa-me ser eu a dizer-te, não me tapes a boca, sabes que isto não se cala, aqui dentro são gritos, dá-te por satisfeito que eu só suspiros. Foste tu que perguntaste, foste tu que e então, por isso abraça-me, isso, aperta bem e aquece-me que estou sozinha e o dia está frio.

Um porta-chaves, um apito, 12 chaves

Ao toque é frio, sempre tive esta sensação única a tocar no ferro brilhante. Não é como aquelas coisas enferrujadas que ao toque nos são ásperas e se nos entranham pelo meio dos dedos, aquele cheiro que demora dias a desaparecer. Este não, é límpido, apesar de velho, tem as suas rugosidades, mas nada de ferrugem. O círculo de onde se dependuram os objectos, 12 chaves, um apito, tem as duas voltas habituais e tantas vezes já se foi abrindo para dar as boas-vindas a novos inquilinos que com o passar do tempo se tornou laço (que alívio, não gosto da arrogância de um porta-chaves novinho em folha que me faz sofrer para o estrear). É uma passagem de modelos de chaves. Há-as grandes, pequenas, com ranhuras bem demarcadas ou já gastas, gordas amantes de canhões em cruz, ou as pequeninas da caixa do correio, que disfarçam a ânsia da curiosidade, mesmo quando há anos só recebemos as contas da EDP e os panfletos de excursões às Grutas de Mira D’Aires com direito a uma garrafa de azeite de 5 litros. Até a chave do cofre, um cofre velho, castanho, comprado na feira da ladra num dia de ressaca, até essa lá está. Nunca é usada, mas faz parte da colecção, e para além disso é das mais vistosas, pequena mas pesada, a cabeça em trevo aberto, sim, está ali porque é onde deve estar. Mais umas 5 chaves que ninguém sabe de onde são. São todas parecidas, a marca marsil cravada a itálico numa das faces, mas com letras diferentes de umas para as outras. Talvez fossem do portão de trás de casa dos pais, ou da Casa de Lagos, que entretanto venderam quando a mãe ficou doente. Não sei, ninguém sabe o que fazem ali aquelas chaves, mas se estão lá, estão onde devem estar. Existe ainda um par de gémeas, à primeira vista, são totalmente idênticas, não fosse uma ligeira mancha amarelada distinguir a mais velha. São chaves sem história, manas por causa das férias em que teve de deixar uma chave para a D. Susaninha ir dar comida ao cágado, e outra ao pintor, que ia retocar os tectos, cansados do caruncho da humidade do rés-do-chão. O apito, o apito é a peça mais pesada do conjunto, está seco, mas cheira a cuspo, a marca do seu uso nos treinos de râguebi nas traseiras da rua. Eles não eram como os meninos da Agronomia, ali cada um fazia pela vida, e cada semana havia um treinador. Assim ninguém se armava em chefe, ou pensava que valia mais que os outros. Todos apanhavam porrada por igual, e o apito, esse era partilhado, para obrigar o seu guardião a nunca faltar aos treinos. Tem as marcas das dentadas furiosas nos dias de chuva em que a preguiça tomava conta da equipa; as lascas dos pedregulhos, onde o treinador descarregava o seu desprezo. É um porta-chaves igual a tantos outros, mas tem este cheiro a partilha, a sacrifício, a dedicação. Guarda os gritos de alento, as palmadas nas costas e os chutos no rabo, as discussões acaloradas, as lágrimas de raiva que lavaram tristezas e comoveram alegrias. Um porta-chaves com um apito, que está exactamente onde deve estar.

Friday 18 May 2007

Capicua

Uma capicua é um presságio de boa sorte. Nunca percebi bem porquê, mas também é verdade que nunca precisei de acreditar nisto; nem nunca fui supersticiosa, a minha vida tem muitos porquês, mas nunca este. Ora então, porquê a superstição?! Porque precisamos da boa sorte de uma capicua? Porque queremos ser lidos de trás para a frente e da frente para trás? Andar nos dois sentidos, falar nos dois sentidos, zangarmo-nos nos dois sentidos? Para que queremos dormir nos dois sentidos, crescer nos dois sentidos, viver nos dois sentidos? ... amar nos dois sentidos...? É hoje e é capicua. São trinta e três, mas eu também não sei porquê.

Monday 14 May 2007

1945

Gosto de ti, mãe, porque és um pedaço de mim, mãe, não, antes sou eu um pedaço de ti. Gosto de ti, mãe, porque me olhas como ninguém, porque mesmo despida, deslavada, desmaquilhada, eu sem nada, mãe, me vês como sou, e me amas assim, mãe. Gosto de ti, mãe, porque me deste a liberdade que eu sempre precisei para crescer e ser quem sou. Gosto de ti, mãe, porque sempre sorris quando estou feliz e finges não perceber quando estou triste. Gosto de ti, mãe, porque me achas bonita e que sou importante, para ti sou importante, mãe. Gosto de ti, mãe, porque ainda hoje empurras o meu carrinho e me embalas o berço para eu adormecer, a tua mão ali ao lado, só para eu adormecer, mãe. Gosto de ti, mãe, porque acreditas em mim mãe, aceitas os meus trilhos, as portas que abro, as janelas que fecho, mesmo que tão diferente de ti, mãe. Gosto de ti, mãe, porque quando estou zangada me perguntas se estou triste e não te zangas, não comigo, mãe. Gosto de ti, mãe quando me mandas à minha vida, mãe, que eu já sei andar, eu sei, mãe. Gosto de ti, mãe quando te acercas de mim e nos abraçamos demoradamente, logo tu, mãe, que foges de ser abraçada, mas não por mim, mãe. Gosto de ti, mãe, porque para ti os meus olhos, que são teus, são cor de amêndoa, e são doces e meigos, não amargos, mãe. Gosto de ti, mãe, porque me enganas, nos enganas só para nós pensarmos que tu estás bem, e com isso ficarmos bem. Gosto de ti, mãe, porque és linda, como um campo de flores que dançando ao vento nos faz fechar os olhos, e nos inspiram, sempre, mãe.

[parabéns mãe. hoje fazes anos. hoje e sempre ensinas-me a voar. a tua menina, a voar, mãe...!]

Saiu-me assim

Há coisas que não se dizem. Não por serem má educação, como um foda-se dito com convicção [há lá melhor alívio que um bom palavrão?]; Não porque não se deve, como falar de anões a pessoas ridiculamente pequenas ou lembrar desastres aéreos na fila do check-in, enquanto se procura o bilhete por entre a gabardina e a pasta do PC; Também não são aquelas coisas que magoam ‘porque é que tens uns joanetes tão grandes?’, ou as palavras com mais de 15 letras, como otorrinolaringologista, ou até aquelas coisas que se dizem mas não se pensam; Não, são as que descrevem o nosso mais íntimo querer, que trepam, indecentes, pelas nossas entranhas e saem num disparo desconcertante, para quem as ouve, fazendo um violento ricochete para quem as diz. Não podia ser um convite para um café, um cigarro partilhado na penumbra da noite, uma boleia para casa, um qualquer pedido suplicado por entre choros e convulsões; não, chega-me assim, na forma de um tudo ou nada agonizado num olhar tardio, que te obriga a desfazeres a tua razão, a abalroares as convicções a que sempre te encostaste (preguiçoso!), e assim, num impulso, um convite indecente, patético, para partilhares comigo todos os pedaços de ti, da tua filosofia, da tua vida. Toda. não me vais ouvir, j. Pois não, porque [agora me lembro] há coisas que simplesmente não se dizem.

Sunday 13 May 2007

Se arrependimento...

Tenho às vezes esta sensação de ser estúpida. É raro, é certo (já foi mais), mas é tão profunda e dolorosa. Como uma espinha grossa que se entala na garganta, e embora nos deixe respirar, nos faça gesticular numa súplica de socorro, de quem se crê a sufocar. Podia ao menos calar esta estúpidez, melhor domesticá-la, chama-la com jeitinho para a amansar 'bichaninho, bis, bis, bis... chhhh, vem cá à dona, isso, vem cá...'. Não, sou uma besta, meto-me com ela, chamo-lhe nomes e ela dá-me uma tareia numa partida de ténis impiedosa; começa timida com um 1-0, vai-se afirmando-se com um 3-1, ainda me debato e consigo alguns deuces, mas nunca, nunca o tie break. No final ganha-me os três sets inequívocos, num duelo desigual, pois então, se ela é muito mais forte que eu! A taça é dela e eu tenho de fazer o luto da merda que disse, escrevi, postei, enviei... que tormenta, este pensamento, que é de si estúpido, e que é, olhar-me envergonhada e perguntar: Porque é que (às vezes?) sou tão etúpida?

Friday 11 May 2007

In the wating line*

Hoje levei um coice da minha mula. E foi cá com uma força! Ela coitadita, acho que nem se apercebeu, que eu até acho que ela gosta de mim, porque sabe que eu sou perdido por ela. Mas é que foi daqueles assim bem puchadinhos atrás, ainda consegui fintar uma das patas que me roçou ao de leve, mas a outra, bem em cheio no peito! Enterrou-se aqui dentro, dividiu-me em dois, e começou a picar, depois a doer, não, começou mesmo a arder, como uma azia angustiada que nem com anti-ácidos. Enquanto me estatelava, ocorreu-me que raio se teria passado, porque é que hoje, justo hoje (!), lhe tinha dado para a razão, logo ela que não é um animal racional, tem manias mais para o emocional! bicho estranho, este meu amor, esta minha mula...
Bem sei que lhe pedi para vir comigo no carro, e ela não é dada a acrobacias, qu'isso é mais comigo; da última vez meti-me num caixote de uma LCD de 47", e a coisa era mesmo à justa, mas consegui, ah se consegui, que grande contorcionista, digo-vos eu!
Oh diabo, que já são horas de lhe dar de comer outra vez, e continuo aqui feito parvo, deitado, prostrado. O melhor é levantar-me, sacudir-me e fingir-me mais direitinho, vou ajudá-la a escolher um pedaço de palha dos mais tenros, que acho que a mula se me vê assim vai ficar entristecida.
E depois vou fazer-me à estrada e seguir uma lebre bem apetrechada, turbo injection, 2700 cavalos e lá vou eu a toda a potência sem a minha mula. Quando chegar vou mudar a camisa, encardida com a queda e trocar os botões de punho, parece que estão partidos.

... ou então vou buscá-la ao hangar lá no Prior Velho... gosto tanto de ti, mula!

[*Zero7]
[Nota da a.: Lebre é o nome dado na gíria automobilística ao carro 'batedor' que vai à frente para estimular a velocidade dos carros de corrida]

Sunday 6 May 2007

Vera

Era a energia, não, a simpatia que se via nela; O mesmo nickname, a tendência para uma vida de decoro e ainda assim a sombra de uma callgirl que a ambas nos fazia sorrir em segredinhos cúmplices. O traço humilde, jovial, assinalado por farois, de uma vida pura, curiosa, ávida de amor; As andanças em mini-saias ou em óculos lazuli, que a pontuavam de cor, num cenário a sépia, onde todos [ou quase todos?] eram iguais. A cor de quem vive a vida a dar, como um poema, um pedaço de coração que uma mãe põe na mão da filha no dia do seu casamento (lembras-te?) lazuli, ou turquesa, talvez, a cor da comunicação, ela que reluz e transparece como se a pudessemos trespassar, não sabendo ao certo onde começa, acaba, onde começa o céu. Como nos dá a certeza que em cada dia um raio de luz, uma nova vida. Que me abraça as angústias com um amor como só ela, como só dela. Vera, em italiano. Amiga, em Português.

Tuesday 1 May 2007

É Maio, hoje e amanhã

O Dia do Trabalhador é de todos; Pelo menos, é assim que o quero, um dia para todos, não se conheçam excepções. Mas vejo-nos esborrachados entre confortos vários, passivos num mundo que corre lá fora, como uma tela gigante que escarnece da nossa estranheza, aquela que perante uma manifestação nos questiona como é que ainda alguém tem paciência para isto?. Gostava de imaginar que este dia, como a chuva que o molha, é nosso, é meu, e não me envergonhar por não ter lutado por ele, por já não lutar por nada, por não questionar o que me é fácil, dado adquirido. Queria ter sido eu a gritar a plenos pulmões que acabe a exploração patronal, venham as oito horas e alguma dignidade. Deveria ter sido eu a levar porrada e a ser enxovalhada por fazer valer os meus direitos. Talvez assim admirasse mais estes dias em que me entrego a um um estado de apatia moral ou intelectual, que começa numa ronha matinal e se arrasta todo o dia, tantos os hiatos, as frestas, os vazios, sim que vazio o imenso tempo destes dias por preencher. Estes dias que se vivem assim, sem nada, rigorosamente nada para fazer. Amanhã vou-me lembrar disto, quando calar as doze horas que trabalho. Amanhã, como todos os dias.

Um lápis. Um afia. As farpas. Eu.


Há textos que se querem afiados; outros, pelo contrário, falhados, zangados, sujos, esborratados. Um lápis afiado não dura muito, por isso um texto pode começar aprumado, distinto, confiante e acabar todo borrado, como um rimmel longo no fim de uma paixão nocturna; ou começar chamuscado, hesitante, como se quisesse falar sem saber o que dizer e terminar, elegante, punjante, verticalmente orgulhoso. É o texto, são as suas palavras, é a vida que nos pede que lápis quer; Hoje que já não sei escrever à mão, afio um lápis que me escreve, enquanto contemplativa, cheiro as farpas de memória desordenadas sobre a mesa. As farpas, eu.